Artista: Helena Lopes
Curadoria: Renata Azambuja
Abertura: 08/07/2023 às 15h
Período: 08/07 a 31/07
Curadoria: Renata Azambuja
Abertura: 08/07/2023 às 15h
Período: 08/07 a 31/07
Do chão para o chão
Helena Lopes é uma pintora que escreve e é uma escritora que pinta – sabe se mover nesses territórios de ilusões. Nos seus trabalhos de pinturas, colagens e desenhos, ou ainda, neste escrito em particular, não existe oposição entre a idéia da poesia à de pensamento. Ela nos oferece pensamentos abstratos que se manifestam sempre com fantasia, mesmo que tratem de um tema muito dolorido.
Desde o início, no seu texto, encontramos a sensibilidade do poeta que habita nela. O leitor se depara com uma profundidade inesperada, que nos faz perceber uma constante emoção criadora, que faz imagens que nos surpreendem e emocionam. Ela mistura tempos, tempos vividos, tempos roubados de lembranças de outros, tempos imaginados. Forma com isso combinações inesperadas.
Helena faz imagens que nos carregam para territórios onde é possível dialogar com manchas, com reminiscências, com nossas dores. Ela sabe fazer associações de imagens e de palavras que nos fazem descobrir novas camadas de significados, fazem associações artificiais para descrever o que nossos vocábulos gastos não conseguem fazer. As imagens criadas pelo seu texto nos permitem atravessar rapidamente o espaço de pensamentos e nos fazem compreender a nós mesmos, ficam ressoando em nós, graças à velocidade de nossa passagem pelas palavras.
Helena olha muitas vezes para o chão e paredes velhas, buscando nestas superfícies impregnadas de tempo, ensinos, aprendizagens. Ela escuta nelas os guardados, os horrores vividos ali.
A artista se utiliza das imagens criadas, seja pelo texto, como pelos trabalhos visuais, para lapidar sua própria sensibilidade e nos oferece assim a possibilidade de fazermos pensamentos, nos indagamos como fazer para pensar, para repensar, para aprofundar o que merece ser aprofundado.
Observo que seu texto tem a capacidade de nos tornar companheiros de sua viagem. Fazemos uma excursão muito diferente, tomamos algumas de suas referências, de suas observações e nos damos conta que ficamos numa espécie de errância de tempos e de espaços, encantados pelos poderes das imagens e convocados a refletir sobre a nossa própria sensibilidade frente ao mundo. A viagem de Helena nos leva para um lugar que só existe quando nos deixamos encantar e fascinar, mesmo que o cenário seja de horror.
O que o texto de Helena nos ensina? Através de suas viagens, da elaboração de suas experiências, nossa consciência se deixa ser invadida, enchida, por existências de outros. O que foi visto como paisagem por ela, o que foi destacado como experiência emocional se transformam em símbolos e alegorias e mostram as flutuações de nossa sensibilidade, sem a tutela da racionalidade. É esta a operação, a artimanha que a viajante Helena faz, deixa emergir um estado poético que se instala para ver sem pressa as paisagens de sua viagem.
Sergio Fingermann
Em 2019, a artista Helena Lopes realizou, com as irmãs e o cunhado, uma viagem à Polônia, em busca das origens familiares. A viagem, registrada em forma de diário e fotografias, culminou em uma visita a um museu aberto da 2a. Guerra Mundial. Por dias os viajantes percorreram centenas de quilômetros pelo país, repousaram em pousadas de cidadezinhas charmosas, se deliciaram com cheiros e sabores exóticos, como qualquer turista. Quando se deram conta, estavam, ela, as irmãs e o cunhado, em uma fila, aguardando para entrar no terrificante museu. Ela poderia ter sido mais uma dentre os milhares de visitantes. As fotografias tiradas poderiam ter sido esquecidas em algum álbum digital na memória do computador, relegadas a “tesouros particulares” ou “troféus ou bibelôs privados”, como disse Didi-Huberman. Porém, a história foi outra. Não havia como voltar, desistir, retomar a leveza e o azul do céu da primavera fora dali. Já “no recorte dentro do território”, do lugar onde não havia saída, onde se impunham a terra morta e o ar rarefeito, apesar do vento, em estado de profunda consternação, Helena não conseguia se ater às explicações do guia e
aos movimentos circunspectos dos visitantes.
Instigada pela “cartografia do piso”, como ela chamou depois, Helena se inclina e passa a clicar as manchas, as texturas, rachaduras, os remendos, as cores, as cicatrizes do piso, como superfície que armazena as camadas do tempo, carregada de significados. Assim, seus olhos se voltaram para o chão. Agora, não mais turista, porém artista, Helena conhece e passa a dialogar com o Personagem, um ser formado por pouco mais que o contorno das manchas, sombras e linhas das rachaduras do chão que, como Virgílio, torna-se o guia que
a conduzirá pelos círculos de dor e sofrimento do lugar.
Na volta, já em Brasília, acontece o que pode ser considerado a segunda etapa da viagem/processo. Com os arquivos devidamente copiados no computador, o diálogo entre Helena Lopes e o Personagem prossegue durante meses no editor de imagens que, coincidentemente, ofereceu a possibilidade da decupagem das
imagens em inúmeras camadas.
Aqui entra o trabalho de arqueólogo. De posse das fotografias digitais e dos recursos do programa, Helena Lopes passa a manusear as imagens, metódica, minuciosa, intuitiva e algumas vezes caoticamente, revolvendo a superficialidade das camadas, resgatando o passado soterrado, as possíveis histórias, emoções e afetos ali contidos. E, ao mesmo tempo, registrando com sagacidade o processo e a reelaborando o diário escrito na viagem. Profundamente poéticos, imagem e texto fluem entre si, se entremeiam e se complementam, “atraindo e construindo a releitura de um passado”. Neste livro leitores e leitoras entrarão em contato com as camadas afetivas profundas trazidas para a superfície pela artista e, por um viés tão único e particular, tomarão consciência das suas próprias histórias e da nossa condição humana.
aos movimentos circunspectos dos visitantes.
Instigada pela “cartografia do piso”, como ela chamou depois, Helena se inclina e passa a clicar as manchas, as texturas, rachaduras, os remendos, as cores, as cicatrizes do piso, como superfície que armazena as camadas do tempo, carregada de significados. Assim, seus olhos se voltaram para o chão. Agora, não mais turista, porém artista, Helena conhece e passa a dialogar com o Personagem, um ser formado por pouco mais que o contorno das manchas, sombras e linhas das rachaduras do chão que, como Virgílio, torna-se o guia que
a conduzirá pelos círculos de dor e sofrimento do lugar.
Na volta, já em Brasília, acontece o que pode ser considerado a segunda etapa da viagem/processo. Com os arquivos devidamente copiados no computador, o diálogo entre Helena Lopes e o Personagem prossegue durante meses no editor de imagens que, coincidentemente, ofereceu a possibilidade da decupagem das
imagens em inúmeras camadas.
Aqui entra o trabalho de arqueólogo. De posse das fotografias digitais e dos recursos do programa, Helena Lopes passa a manusear as imagens, metódica, minuciosa, intuitiva e algumas vezes caoticamente, revolvendo a superficialidade das camadas, resgatando o passado soterrado, as possíveis histórias, emoções e afetos ali contidos. E, ao mesmo tempo, registrando com sagacidade o processo e a reelaborando o diário escrito na viagem. Profundamente poéticos, imagem e texto fluem entre si, se entremeiam e se complementam, “atraindo e construindo a releitura de um passado”. Neste livro leitores e leitoras entrarão em contato com as camadas afetivas profundas trazidas para a superfície pela artista e, por um viés tão único e particular, tomarão consciência das suas próprias histórias e da nossa condição humana.
Gladstone Machado de Menezes
Da aspereza à delicadeza, do inanimado à vida
O destino colocou Helena e eu diante de lacunas, buscas e outras inquietações ligadas à inexistência de memórias capazes de atenuar angústias e dar sentido e continuidade à história de nossas vidas. Um personagem real e invisível nos aproximou. Por caminhos distintos e épocas próximas nos acercamos de possíveis realidades, ela pela fotografia e interpretação e eu pela narrativa. Escrevi: Meu pai, um desconhecido?
Ambos saímos à procura de significantes que poderiam preencher curiosidades, mistérios, segredos na tentativa de ocuparmos vazios angustiantes existentes em nosso mundo interior.
Em Do chão para o chão Helena Lopes registra com sua câmera um turbilhão de sentimentos. Surgem imagens e vozes poéticas das fissuras do cimento árido corroído pelo tempo. Dores, cinzas e esperanças emergem das profundezas da alma da autora e mobilizam imagens e vozes nos viventes espectadores.
Desenraizamentos produzido pela partida apressada e involuntária, fuga das perseguições e traumas produzidos pela fome, miséria, espoliação dos direitos, das propriedades e da vida. Violências causadas pela guerra e pós-guerra na vida de nossos antepassados na Europa do Leste, revividas na atualidade pela guerra entre Rússia e Ucrânia. Surgem campos de refugiados, campos de concentração, campos da morte, cujas lembranças avivam temores, alguns incógnitos, que atingem e agitam nosso âmago. Fenômenos traumáticos que se transmitem de geração em geração reativados ou instaladas por conflitos e incertezas da vida contemporânea que conturbam o dia a dia de cada um.
Helena Lopes dá vida e cor lá onde vidas foram transfoormadas em cinzas. A artista, com suas habilidades, extrai leite das pedras. Com sua arte ela registra e transforma seu retorno ao passado para glorificar o presente e tentar preservar o futuro frente a violências da natureza, e em especial a humana. “O chão armazena os caminhos do tempo” diz Helena. São registros que se inserem no inconsciente em diferentes níveis reconfigurados em elementos que constituem o estranho presente na alma de cada um de nós, sem que dele a gente se aperceba. A criatividade da artista e a imaginação do leitor fazem emergir das fissuras,
do chão árido, afetos, fantasias reais e virtuais, entre outros registros profundos armazenados nas criptas do inconsciente. Conteúdos que emergem das fissuras da dor transformados em vias de acesso a possíveis revelações contidas nas várias narrativas, tanto pictórica quanto verbal, brindadas pelas lentes sensíveis da autora. O leitor descobrirá ao caminhar por campo de cinzas e de flores a multiplicidade de vivências
reais e imaginárias em conflito com suas próprias experiências. Diálogos que emergem com o personagem que brota do cimento pleno de histórias. São os campos da Europa do Leste com odores de flores e das dores, restos de memória dos viventes remanescentes, daqueles por quem choramos nas lembranças que deixaram ao transmitirem aos seus descendentes um passado-presente.
Este livro evoca o trabalho sensível, profundo, realizado por Helena Lopes na expressão de suas percepções e transformações criativas que sensibilizam e estimulam o leitor a viajar para o âmago dos seus sentimentos. Faz evocar identificações com um passado histórico presente em sua própria bagagem. Emoção, curiosidade e encantamento é o que desperta ao se saborear imagem e texto. O clicar da máquina fotográfica pode parecer um ato aleatório, mas está tomado por memórias inconscientes que fazem o dedo apertar o botão de forma aparentemente involuntária, porém marcada por emoções que, naquele momento, ainda não puderam ser simbolizadas em imagens visíveis e menos ainda em palavras. Conteúdos presentes no inconsciente de Helena que, ao longo do tempo, adquirem sentido servem de cliques para o inconsciente dos leitores. Estes, por certo, aperceberão algo da autora que, involuntariamente, fará desencadear novas formas e sentimentos. Assim, autora e leitor constroem uma nova história, cada um com a sua trajetória ao preencher e dar luz e compreensão às lacunas da alma. Helena chama a esse momento de cura ao tecer por meio de sua criatividade linhas, formas e cores que unem elos perdidos, que atenuam ou eliminam fraturas e fissuras no cimento enrijecido das lembranças. Um processo metabolizador da dor e do vazio ao fazer vir à tona imagens transformadoras, capazes de gerar harmonia, certa coerência e paz interior. Que seja boa a observação e a leitura.
David Léo Levisky